Jornada fronteiriça percorrendo florestas e maciços montanhosos de granito entre a Albânia, Montenegro e Kosovo. Trekking de 7 dias para percorrer 192km com um desnível + de 12000m, numa das zonas mais inóspitas da Europa.
dia um
LISBOA > BERLIM > PODGORICA > SHKODËR
Shkodër é uma das cidades mais antigas dos Balcãs. A cidade estende pela planície de Mbishkodra, entre os pântanos de água doce do Lago Shkodër e o sopé dos Alpes albaneses. O lago, em homenagem à cidade de Shkodër, é o maior lago do sul da Europa perto do mar Adriático.
dia dois KOMANI LAKE
O Lago Komani foi criado nos anos 70 por duas barragens, uma perto da vila de Komani e outra perto de Fierzë. A construção dessas estruturas provocou o isolamento de aldeias e propriedades rurais que se estendiam através do vale. São 19 milhas de uma língua de água com escarpas vertiginosas que lembram os incríveis fiordes da Islândia.
Quando chegamos a Valbonë, as Montanhas Malditas parecem quase lunares. Não é por acaso que os locais lhe deram o nome. Esqueletos de árvores, raízes a explodir da terra e formações rochosas de pedra clara atestam a violência das tempestades de inverno.
dia três VALBONA - CERÉM (via Prosllopit)
14,5km | 7/8h | 1170D+ 930D-
É uma entrada a pés juntos. O trilho cabreiro, ziguezagueante e calhau solto, aquece-nos as pernas, faz nascer um rio pelas costas e a farta gravidade de uma subida a pique.
Tudo isto em 5 minutos.
Se o pulmão deixar, é assim que mergulhamos no Valbona Valley National Park por uma floresta de faias tão densa como selvagem. E que floresta!! Uma mancha verde de sombra que nos soube pela vida, mas nem por isso se tornou menos íngreme.
O passo de Prosllopit parece ser já ali à frente. Mas não. A luta da subida é salva pelo profundo Vale de Valbona, que vai desaparecendo nas nossas costas. À direita vemos o Zla Kolata, localizado na fronteira com o Montenegro, com 2.534m é o pico mais alto do país, no entanto está em 16° no ranking Albanês.
Com a chegada a Prosllopit (2039m), sabemos que estamos a cruzar a fronteira com Montenegro, a alcançar o ponto mais alto do dia, uma óptima oportunidade para desembrulhar o lunch package e dar tréguas aos pés moídos.
O trilho até Çerem agora é a descer, mas não é por isso que se torna mais fácil. É um caminho de formações cársticas acentuadas, muito íngreme que te obriga a usar as mãos. As condições atmosféricas foram-nos muito favoráveis, pois se houvesse chuva nesta secção, a rocha estaria escorregadia e tornaria a progressão ainda mais lenta. Para ser honesto, foi a melhor parte. Mais desafiante, mais divertida, com um cenário espectacular. Saindo do playground, aterramos num planalto de pastos de montanha, hoje curiosamente sem sinal de gado ou pastores. Aproveitamos esse pasto para descansar uns minutos de papo para o ar.
Fazemos mais uns kms do lado Montenegrino até alcançar o Passo Borit (1850m), outra porta de montanha para a Albânia, patrulhada por uma gloriosa manada de vacas, entretidas a despachar o pasto mais saboroso do mundo. Escorrega-se até Çerem por um vale rodeado de pinheiros nórdicos e prados de verde explosão até à primeira cabana de uma família de pastores. O melhor spot para um café turco, dois dedos de conversa - equivalente ao inglês ultra-rarefeito - altamente compensado com a hospitalidade. Çerem é já ali.
dia quatro CERÉM - DOBERDOL
16km | 7h | 1030D+ | 440D-
Estão duas crianças ao fundo do vale a tomar conta das ovelhas e uma mulher com o tradicional lenço branco na cabeça a enxotar umas vacas que se aproximam da roupa lavada, que vai secando ao sabor do vento.
Estamos sentados no cimo da colina, com vista para este vale que acolhe uma pequena aldeia de pastores, a que chamam de Balqin. A montanha que atravessámos ontem está, imponente, nas nossas costas - e, inevitavelmente, na nossa mente. Damos descanso às pernas pelos 10km que já acumularam desde a manhã em Çerem. É cenário para merecer uma pausa. «Heeeey! », chamam por nós.
Um homem com um rosto amistoso, esculpido com rugas cavadas pelo ar da montanha caminha em nossa direção. Acena para nós e pergunta com um sorriso caloroso: «Café? Chá? Raki? » Ahhhh Raki, porque não? De facto estava longe de ser sensato recusar esta oferta. Afinal de contas, é por isto que caminhamos os Picos dos Balcãs: mergulhar nas Montanhas Malditas, conhecer as suas gentes e beber a sua cultura. Mais literal não há! O raki é uma bebida alcoólica de 53% feita de ameixas, a real cura para todas as maleitas na Albânia, como dizem os locais.
Se dizem, eu acredito! Ao contrário da vodka, o raki bebe-se devagar, um pequeno gole e deixamos que ele queime delicadamente a nossa garganta. Este, em particular, é para esquecer o “delicadamente”, mas a hospitalidade foi irrepreensível e o queijo fresco caseiro, a que eles chamam Kashkaval, apagou o fogo etílico. Estava divinal!Despedimos-nos com a alegria de 2 copos bem aviados e a sensação de que a partilha de um espirituoso é uma impagável linguagem universal. Deixámos 300 Lek.
São cerca de duas horas de subida constante até chegar ao incrível vale de Doberdol, um pequeno assentamento de verão construído no meio do nada ao longo de um pequeno rio que desce a encosta em pequenas cachoeiras. Esta aldeia de montanha é feita de cabanas rudimentares dispersas pelo vale, que abrigam pastores durante os meses quentes do ano. Cavalos, vacas e ovelhas pastam livremente nos arredores da aldeia, onde não são necessárias cercas.
Aqui, as pastagens são ricas e abundantes para estes animais, pois os solos têm nove meses de inverno para se recompor. Parece que parou tudo há 100 anos por aqui!
Espera-nos o calor da hospitalidade do grande Uka, da Lisy e a pequena Anna, e uma deliciosa refeição caseira na nossa cabana de Doberdol.
dia cinco DOBERDOL - BABINO POLJA
16 km | 7h | 802D+ | 1072D-
O dia acordou cinzento, a largar pingas em barda lá de cima, ao ponto de não desvendar Tromeda (2366m), o emblemático pico que faz fronteira com os três países (Albânia, Montenegro e Kosovo) Tribord, como lhe chamam.
Começamos o trilho nessa direcção que, curiosamente, é a mesma que a valente borrasca que estamos a apanhar no lombo.
Vale-nos um pequeno-almoço de campeão cuidadosamente preparado pela mãe da Lizi, na GH em Doberdol.
Seguem-se vários kms de pura montanha e a sensação real de que estás longe de tudo. Se dar conta, avistamos o famoso lago da felicidade, como chamam o Hrid jezero. A 1970m de altitude é o maior lago glaciar de Montenegro. Encontra-se no lado noroeste da Cordilheira Prokletije. O lago é cercado pelos picos das montanhas escarpadas de Hridski Krs (2358m) e Krs Bogicevica (2374m). Dizem que o lago foi criado pelos Deuses, para que as sereias pudessem nadar longe dos olhos humanos... Quando foi descoberto, os deuses enfurecidos, amaldiçoaram as montanhas com fortes tempestades e os picos despidos de árvores, íngremes e dramáticos. Daí as Montanhas Malditas.
Não há peixes no lago Hrid. Foram com as sereias provavelmente, no entanto há muitas criaturas vivas bem perto: veado, cabra-montesa, urso, javali, raposa, coelho, texugo, lobo, marta, esquilo, perdiz e aveleira silvestre. Com paciência, silêncio e alguma sorte poderás dar com eles por aqui.
dia seis BABINO POLJA - VUSANJE
14 km | 7h | 590D+ | 1136D-
Segundo uma amiga que percebe destas coisas, Babino Polja que dizer “Campo da Avó”. E foi assim que nos sentimos na casa do Enko. Bem dormidos, comida boa e em farta e uma hospitalidade do campo. Enche o coração. Tchau Vó!
A secção inicial sobe pelo coração de floresta densa de faias e coníferas por um trilho traiçoeiro, com inúmeros pequenos trilhos de ovelhas usados pelos pastores para subirem a montanha durante os meses quentes de verão. Lá em cima, as pastagens são tenras e carregadas de nutrientes.
Estamos a caminhar pela área mais protegida das Montanhas Malditas, que pertence a Montenegro. É uma região maioritariamente povoada por Boshnjaks, a minoria albanesa de Montenegro. Em 1878 este território foi separado do Império Otomano para se juntar a Montenegro. A transferência da terra foi sangrenta porque a população de língua albanesa não mostrou grande vontadinha em juntar-se as montenegrinos.
Outros tempos.
dia sete VUSANJE - THETH
21 km | 8h | 1110D+ | 1412D-
Algumas horas depois, enquanto serpenteava por um caminho quase inexistente, dava por mim a confirmar quase ao minuto o track no gps. Where is the f*#&ing trek?? foi um dia longo, ensolarado, com uma brisa fresca que chega da montanha. Já tínhamos muitas subidas bem íngremes nas pernas e sempre que entrávamos numa floresta quase virava noite de tão densa que era. zig-zagging era o desporto que restava para aliviar o declive e, de repente, voilá! Liqeni i Kucishtes são dois lagos a 2272m, perdidos num vale profundo rodeado de floresta de pinheiro nórdico e vértices onde a neve teima em não desaparecer.
Como se os rios fossem feitos de pedras brancas e rolassem continuamente pelo vale abaixo. depois de vários dias pelas altas terras do Kosovo, de volta às montanhas Albanesas, com Theth no horizonte.
dia oito THETH & BLUE EYE
12.9 km | 5h | 514D+ | 514D-
Como se os rios fossem feitos de pedras brancas e rolassem continuamente pelo vale abaixo. depois de vários dias pelas altas terras do Kosovo, de volta às montanhas Albanesas, com Theth no horizonte.
O Parque Nacional de Theth é o coração dos Alpes albaneses e foi criado para proteger os vários ecossistemas, a biodiversidade e o património cultural e histórico da região. Ocupa uma área de 2630 hectares e está localizado a uma altura de 600 a 2570 metros acima do nível do mar. O último dia de jornada é dedicado ao Vale de Thethi. Aldeia albanesa, localizada a norte do vale de Shala, entalada por inóspitas montanhas alpinas. A cascata de Grunas (Ujëvara e Grunasit) é uma cachoeira de 30 metros de altura no início do trilho que corre ao longo do rio Lumi i Thethit.
O Blue Eye é uma grande bacia de água com uma cachoeira saliente de azul celeste que fere a vista e a água é tão fria que dói! É feio, feio, não vão para lá!
Esta maravilha da natureza é formada pela erosão da rocha provocado pela água que desce das montanhas. O Poço Preto tem cerca de 100 m2 e cerca de 3 a 5 metros de profundidade. O Rio Negro é inteiramente formado a partir da neve derretida nos Alpes dos Balcãs.
A culinária das Balcãs tem origem rural, costeira e montanhosa. Carne, e vegetais são fundamentais para a culinária da região norte. A hospitalidade é um costume elementar das comunidades da montanha e servir comida é essencial para bem receber os viajantes.
dia nove DIA DE VOLTAR
Para sair do Vale de Trethi temos que colecionar quase uma mão cheia de horas em caminhos sinuosos, com ladeiras a pique com espaço só para um carro onde, por vezes, bem mais do que gostaria, passam dois. A nossa carrinha é uma Mercedes laranja 4x4 dos anos 80’, conduzida por um local de Bogë, terrinha no meu de nenhures, não muito longe daqui.
Quando se sobrevive a isto e se chega lá a cima, o cenário é sublime. Aos amigos que gostam de abanar a anca, chamavam-lhe um figo.
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